Quanto tempo ausente e longe da escrita, quase 2 meses, os dias se encheram de afazeres e acabamos deixando este espaço de diálogo em pausa, como se fosse possível, parar de puxar o fio que conduz nossa vida e voltar lá, onde deixamos um nó para desatar. E que nó ficou aqui para desatar!
Falamos nos outros textos de sonhos, desejos, do que nos move e agora só queríamos falar da vida. Que difícil escolher um texto específico quando se quer falar do dia a dia, da vida que se constrói a cada pulsão.
E, em meio a tantas histórias, voltei àquelas sobre a infância e o olhar da criança, afinal "a vida acontece muito de repente˜, como afirma Ondjaki no conto "O último carnaval da Vitória", do livro Os da minha rua.
Essa ideia do de repente da vida junto com vários acontecimentos recentes nos fez pensar no que é a vida e, nesse preâmbulo, encontrar um pouco desse sentido na voz do menino narrador de Ondjaki nos trouxe um certo alento: "A vida às vezes é como um jogo brincado na rua: estamos no último minuto de uma brincadeira bem quente e não sabemos que a qualquer momento pode chegar um mais velho a avisar que a brincadeira já acabou e está na hora do jantar".
No conto, essa imagem de estarmos no meio de algo que de repente se desfaz aparece nas brincadeiras do menino, mas isso pode acontecer no meio de um trabalho, no meio de um relacionamento. E exatamente no meio de algo que nem previmos somos chamados a perceber que a vida acontece no viver.
Quantas pessoas procuram, no consultório, reconhecer a vida que desejam/sonham naquela que vivem de fato. Essa relação entre realidade e ilusão é uma das mais caras dentro do processo terapêutico: como nossas escolhas nos encaminham para a vida que de fato queremos. Freud afirmava que aquilo que mais negamos é o que mais desejamos, mas ainda não reconhecemos conscientemente.
Além disso, ele dizia que, no princípio, palavra e magia eram a mesma coisa, ou seja, acreditar que a palavra materializa o que a vida que se vive é algo já previsto dentro da Psicanálise. Quantos ainda temem o poder que palavra pode ter e outros ainda que a usam como bálsamo para ir ao encontro da vida fantasiosa que criaram.
Recuperar a infância na literatura é mais do que presentificá-la, é também recriá-la a partir de uma memória já preenchida da vida do presente. Como foi para o narrador deixar de viver o "Carnaval da Vitória"? Hoje ele nos conta a partir de suas reflexões de adulto, de alguém que olha para o passado e recria o que não é possível completar com o consciente.
A palavra constrói essa memória de infância que se faz na e pela leitura. Nesse sentido, a leitura literária nos auxilia na construção de sentidos diversos aos nossos, e mais do que isso, nos ajuda na construção de nossa alteridade, a ler o outro, sendo uma forma de nos ler também.
Em nossa infância, alguns acontecimentos vão nos ensinando que existem algumas coisas fixas na vida, a escola, a viagem de férias (quando é possível), o almoço em família, o final de ano. Mas, ao longo de nossa vida, vamos sendo convidados a tantas outras vidas: morar fora do país, casar mais tarde, não casar, ter filhos, morar sozinho, escolher uma carreira, e, além disso, ser bem sucedido, além da carreira, pensar no lazer, ter um tempo livre, praticar exercício, e esse texto poderia ter páginas e páginas se fôssemos listar tantos convites que recebemos. Então a questão é pensar: como escolhemos?
Este texto nasce da dúvida do momento que estamos vivendo, fomos pegos de surpresa no que parece ser uma virada do mundo, seja no aspecto ético, mas sobretudo, no aspecto humano.
A palavra tão cara e motivadora deste espaço demorou a sair, pensei que fosse pelo número de afazeres, mas vejo que tento encontrar na literatura palavras que, segundo a romancista Jeanette Winterson, possam ser remédios que curem a ruptura que a realidade vem provocando na imaginação.
Gláucia Gotardo Luiz.
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