Desde que começamos este espaço temos falado de memórias, de sentimentos vivenciados a partir delas ou apesar delas. Hoje quero retomar a figura do avô presente em outra obra de Bartolomeu Campos Queirós, o avô paterno, por quem o menino-narrador tem tanta admiração e afeto. O avô da obra “Por parte de pai” é quem ensina o narrador a registrar o mundo por meio da escrita.
Era a partir das histórias escritas pelo avô que o menino ia relendo a vizinhança, os vizinhos, os pequenos e grandes acontecimentos que eram registrados pelo avô nas paredes da casa, tudo o que acontecia na pequena vila onde moravam, como uma necessidade de imobilizar a vida:
"Usava todas as janelas da casa, apreciando os quatro cantos do mundo, sempre surpreso, descobrindo uma nova cor, um novo vento, uma nova lembrança. Havia tanto mundo para ver, dava até preguiça, diz ele. Uma coisa meu avô sabia fazer: olhar. Passava horas reparando o mundo. Às vezes encarava um ponto no vazio e só desgrudava quando transformava tudo em palavras nas paredes."
A vida ficava assim registrada em palavras escritas na parede, a casa como guardiã de segredos, de histórias, dos cheiros e, principalmente, da intimidade vivida ali.
A ação de ler e dizer o mundo pode ser aprendida ao longo de vida. Passamos por muitos eventos, algumas lembranças podem ficar encobertas ou mesmo serem esquecidas. Isso, porém, não tira delas a importância que podem ter para cada um de nós. Ter algumas memórias ali registradas traziam para aquele menino um fascínio e, ao mesmo tempo, um medo de poder encontrar-se ali descrito nas palavras do avô.
Quantos medos nos assombram na infância (e ao longo de nossa vida!), talvez um deles, que compartilho com esse narrador, era o de não ser mesmo filha (e no caso dele, filho) do próprio pai, como não havia tantos registros fotográficos, ou em vídeo como hoje, não tínhamos a experiência de nos ver saindo da barriga da mãe, então, esse medo pairava: será mesmo que sou filha de meus pais? E de que seria esse medo, se recebia tanto afeto? De não pertencer àquela família, talvez. E o menino temia que aquele avô, que tanto lhe ensinava, pudesse deixar de sê-lo.
A professora e pesquisadora Ecléa Bosi afirmou que "a criança recebe do passado não só os dados da história escrita; mergulha suas raízes na história vivida, sobrevivida, das pessoas de idade que tomaram parte na sua socialização". Isso se materializa na narrativa de Bartolomeu, pois a relação do pai, do filho e do avô compõe mais do que um convívio de gerações, alimenta o imaginário desses indivíduos que compartilham momentos cotidianos, familiares e, sobretudo, humanos:
"Para meu avô eu repetia, em casa, as histórias das calmarias, do Cabo das Tormentas. E como um bom aluno ele me escutava, sem pestanejar, duvidando, eu sei, dos movimentos de rotação ou translação. Ele sabia ler as estações, as fases da Lua, o sentido dos girassóis na cerca de bambu. Depois ele me tomava as lições ou me pedia para escrever até 100 ou até 1000, pelo prazer de me ver mordendo a língua no esforço de não saltar nem um número [...]. E meus colegas elogiavam a minha atenção, enquanto meu avô me ensinava, junto com a escola, a saldar a vida."
Esse avô vai compondo a vida desse menino de afeto e de linguagem. É importante ressaltarmos que temos aqui um exemplo de algo para o qual Freud chama atenção quando fala sobre as memórias de infância: a elaboração dessas lembranças não é feita no momento em que é vivida. Temos aí "o contraste entre o ego (eu) que age e o ego que recorda". A reflexão sobre a lembrança só pode ser vista num momento posterior, pois, no momento do acontecimento, o indivíduo (o menino-narrador) está ocupado de viver tudo aquilo. O que nos chega é a elaboração do vivido, que nos auxilia a elaborar as nossas memórias de tempos similares.
Aproximar-me dessas lembranças desse menino trouxe cenas que vivi ao lado do meu pai, que não foi um homem de tantas palavras, mas sim de muitos olhares de afeto. Reconhecer nossa capacidade de reler (ou reelaborar) o vivido, por meio dessa obra, amplia nossa consciência sobre o que nos compõe. Nesse sentido, vejo a palavra como esse instrumento da possibilidade de aprendermos a nos pensar, a nos dizer, e, principalmente, a ser.
por Gláucia Luiz Gotardo.
Ilustração: Parede das Memórias, Somnia Carvalho, 2017.
por Gláucia Luiz Gotardo.
Ilustração: Parede das Memórias, Somnia Carvalho, 2017.
Quanta sensilibidade em retratar o assunto.
ResponderExcluirMemórias...memórias são os registros da nossa história, dos sentimentos, emoções que vão formando e dando consistência ao nosso Ser. Luciana
Nossa Qual o sentido da vida, profundo... Evolução, liberdade, amor, felicidade?... Acredito estar sempre evoluindo, sempre melhorando...
ResponderExcluirRealmente nossa vida é construida de autos e baixos, sendo este último, o responsável para uma construção sólida e o Alto, onde desfrutamos por alguns momentos nossas batalhas vencidas.
ResponderExcluirA.F.
VICENTE.