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Amar sem medo




Quanto tempo longe da palavra escrita! Com tantas coisas para dizer, mas longe da página em branco há mais de um ano. Meu último texto falava sobre mudanças. E quantas ocorreram neste último ano! Uma delas foi o fim de um relacionamento de 10 anos. Demora para aquilo que a gente sente se transformar em ação. E demora mais um pouco para virem as palavras que nos ajudam a elaborar o fim e abrir caminho para o novo.

Mudanças que estiveram acompanhadas do medo. Hoje quero retomar esse blog tratando desse sentimento que nos domina, nos aprisiona e mais do que tudo nos paralisa. Sabemos que o medo tem uma função biológica fundamental: nossa preservação, mas ele também nos afasta dos nossos desejos mais bem guardados.
E quero falar de desejos: quantos desejos castrados, trocados ou mesmo latentes. Alguns estão aí por medo, ou como preferem alguns, por falta de coragem. 

Recentemente estava lendo "Medo Líquido" de Zygmunt Bauman, lá ele falava sobre o nosso medo da incerteza, do amanhã. Falava de um medo de projetar um futuro desconhecido, de como tememos antecipá-lo, com medo de imaginá-lo diferente do que gostaríamos. 

O medo é um dos sentimentos mais caros ao ser humano. Quantas vezes ouço no consultório "Não sei porque agi desta ou daquela forma" ou então "Não sei porque não consegui dizer nem fazer nada". Ou seja, o medo nos paralisa e lá ele está a nos dizer o que fazer (ou não). 
O medo inviabiliza a escuta, as realizações e os amores. Por medo, deixamos de lado o amor que podemos experimentar ao lado de uma outra pessoa. Há também o medo do futuro ao lado de alguém que julgamos não amar mais.
Segundo Christian Dunker, o amor serve para nos transformar numa outra pessoa, em alguém diferente do que somos para estar com o outro diferente de nós. Há um desejo latente em amar, em não nos perdermos de nós mesmos, em não abandonarmos o que somos ou desejamos ser. O outro que se funde deixa de ser ele mesmo para se tornar o que o outro deseja, esse é o amor que não se mantém, é o amor que não vê o outro como alguém com quem se deseja intimidade, cumplicidade. O amor no qual um precisa deixar de ser quem é para ser o que o outro deseja está fadado ao fim, não é possível se manter, pois o amor envolve o risco de nos mostrarmos como somos, com toda nossa fragilidade, confiar ao outro os próprios medos, esse amor é raro, tão raro quanto encontrar uma pessoa em que você possa vislumbrar esse outro tão igual a você, uma outra alma tão similar a sua.

Se pensarmos nas possibilidades de encontrarmos esse outro a quem desejamos, admiramos e por fim amamos não é tão fácil assim. Quando se é jovem, o desejo se mistura com o futuro, com a fantasia do que será. 
Como encontrar uma outra pessoa em que você se reconheça não parece ser tarefa fácil, passamos por alguns amores, algumas fotos, alguns aplicativos, mas ainda assim sentimos o déficit da intimidade, nas palavras do psicanalista Christian Dunker, o que mostra quão distante estamos da pessoa que preencheria esse lugar do outro. 
E quando um dia você encontra esse outro, que traria a palavra que você deseja para ajudá-la a nomear esse sentimento tão ambíguo, não há palavra, apenas palavras. Isso me trouxe à memória o poema de Fernando Pessoa, "Como é por dentro de outra pessoa":




Como é por dentro outra pessoa

Quem é que o saberá sonhar?
A alma de outrem é outro universo
Com que não há comunicação possível,
Com que não há verdadeiro entendimento.
Nada sabemos da alma
Senão da nossa;
As dos outros são olhares,
São gestos, são palavras,
Com a suposição de qualquer semelhança
No fundo.




Esse poema ecoa em mim: "a alma de outra pessoa é outro universo". Sendo assim, um outro universo não aberto a enfrentar o risco de um novo amor. Não aberto a escrever uma nova narrativa do amar. Assim se segue, assim seguimos, tentando suprimir o déficit da intimidade, querendo assumir o risco de amar novamente. Esse déficit pode ser visto na negação do envolvimento, na tentativa de prolongar encontros efêmeros. 
Entendo que a narrativa do novo, apesar de assustadora, talvez valha a pena, pois como dizia Rimbaud, "é preciso reinventar o amor, toda gente sabe". Talvez todos saibam, mas nem sempre seja possível enfrentar o medo.

por Gláucia Luiz.

Ilustração: Somnia Carvalho, 2019.

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