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Carrascoza: "Aos 7 e aos 40", Parte 2, Inevitável Tempo

        

Quando iniciamos este espaço com a reflexão sobre o livro “Aos 7 e aos 40”, de João Carrascoza, parece ter faltado a relação que tanto desejamos: pensar a semelhança entre a narrativa do autor e a nossa. O que se passa no intervalo de tempo entre a infância e a fase adulta? Por que esse livro me causou tanto impacto como eu afirmei anteriormente? Por que meu  desejo de abraçar o personagem ao terminar de ler o livro? A resposta, que não havia sido dada claramente no primeiro texto, está aqui: foi sua proximidade comigo! Estou nesta faixa etária "aos 40" e isso mexeu bastante comigo: uma história que emociona e dói. Foi isso que senti quando terminei, como é doído o envelhecimento e, principalmente, o balanço da vida. A passagem do tempo nos toca sem percebermos exatamente, quando nos damos conta, estamos lá aos 40. Como ocorre essa passagem tão sutil e tão precisa?
Essa obra mostra-nos quanto de nós se construiu na infância e nos acompanha ao longo da vida, sejam os medos, sejam as pequenas conquistas. Esse personagem quando menino "ia correndo à vida", saboreava-a em cada refeição, em cada brincadeira. E da pressa de criança chega à pressa da vida adulta, tão cheia de afazeres e falta de tempo de viver o que se deseja. Não podemos exatamente dizer "de repente" 40, pois muitas narrativas construímos até aqui.Mas talvez concordemos com a necessidade de parar e rever quem nos tornamos a partir disso. Que histórias nos compõem e precisam ser revisitadas?
Esse menino aprendeu com os pais a ler mais do que as letras, aprendeu a ler as pessoas, a entender o silêncio e reconhecer seu sentido. Ao lado do pai, conhece a fragilidade dos adultos e se compadece:


"Não entendi nada, mas pelo tom da conversa, percebi que meu pai estava triste. Os homens gargalharam, assobiaram e não ouvi ele dizer mais nada. Andei devagar, espreitando, ao redor dos sacos de açúcar e vassouras de piaçava, e vi meu pai encolhido, o sorriso longe de seus lábios, então senti que os homens estavam zombando dele. Me deu uma coisa por dentro, tive vontade de quebrar os vidros e chutar as latas que vi pela frente. [...]
Saímos. Antes de chegar na Kombi, olhei de rabo de olho e vi, surpreso, que eu meu pai chorava. Na hora eu achei que seria melhor não olhar, até procurei fingir, pra ele se controlar. Eu senti que ele se envergonharia se eu percebesse. Andamos depressa, a grande mão dele no meu ombro, num toque leve, um carinho resignado. Como quem não quer nada, fiz que estava atento ao movimento das ruas, mas vi a dor cobrindo o rosto dele quando o sol cintilou em seus olhos."


O sofrimento do pai é reconhecido pelo menino, ele sente a dor do pai, mas eles não conseguem falar sobre ela. Vemos um afeto que não pode ser mostrado socialmente, essa é uma das cenas mais marcantes se pensarmos em nossa experiência de vida: quantos afetos calamos? Lembro-me do sofrimento no corpo do meu pai quando soubemos do acidente que levara meu irmão, quanta dor! E eu só queria poder tirar a dor desse homem que transmite afeto pelo olhar, mas não era possível. Acho que foi minha primeira sensação de impotência e reconhecimento do quanto somos frágeis.
Mas precisamos ser fortes, enfrentar os medos e seguir em frente, esses são os imperativos do mundo adulto (e até para algumas crianças que precisam 'engolir' o choro), e o que fazemos com as tristezas? O que fazemos com nossa fragilidade no transcorrer do tempo? Aprendemos a nomeá-la, aprendemos a dizê-la, a escrever sobre ela. É o que faz o narrador desta história, ele nos ajuda a olhar para o silêncio que se instalou entre homem e a esposa, tenta dizer o que aconteceu entre eles. Mostra-nos o sofrimento desse personagem e nós nos reconhecemos ali, no silêncio, no desejo de dizer, que é impedido pelo medo:


"E o menino?
Ele está bem. Sente muito a sua falta.
O homem ia dizer,
E eu a dele,
E se fosse ao fundo de si, completaria,
E também a sua.
O menino, de pijama, reapareceu na cozinha,
Tô pronto.
O pai e a mãe o mediram,
Cada um via nele um pouco de si (um pouco do que haviam sido e do que jamais seriam)."


O sofrimento da separação experienciado pelos pais do menino é compartilhado conosco. Mesmo que não tenhamos passado por isso, podemos nos compadecer e olhar para nossas vidas. O que veria esse homem "se fosse ao fundo de si"? E nós o que veríamos? Qual é configuração dos nossos desejos? Mesmo querendo estar mais presente na vida da esposa e do filho, esse homem ficou ausente por conta da rotina que levava. Desejava prender-se àquele presente: a casa, a mulher e o filho, mas precisava voltar ao mundo exterior, 'ganhar a vida'. Assim somos nós: com muitos afazeres e rotinas que nos distanciam do outro com quem gostaríamos de estar.
Compartilhar a vida desse menino colocou-me em contato com um medo que existe em mim: envelhecer. Essa experiência marcada em nosso corpo e sempre lembrada a cada perda que temos ao longo da nossa vida. As lembranças que tenho da minha infância hoje estão compartilhadas com meus pais, meus tios e meus primos, além dos poucos amigos que fazem parte da minha vida adulta. É bom revisitar essas memórias a partir das lembranças desse menino.
Para recomeçar a vida sozinho, esse homem voltou para o passado. Buscou algo que lhe faltava, algo que parecia perdido. Então foi reencontrar a cidade da infância, visitou o irmão e foi em busca dos antigos amigos. Dentre eles, destaca-se o Bolão, que o ensinava a partilhar e, principalmente, a estar junto. Alguém que tirava esse menino de si mesmo, ou seja, que o auxiliava neste exercício da alteridade, ação fundamental para a constituição da subjetividade. Os momentos compartilhados com os amigos desse menino ajudam-no a deixar de estar sozinho. Esse momento parece ser fundamental para a construção desse homem que deseja recuperar esse estar junto na vida adulta.
Pensar no futuro parece ser uma das coisas mais angustiantes: quem serei quando estiver com meus 50 ou 60 anos? Para sanar essa angústia, vendem-nos ideais de envelhecimento, relacionados a termos sucesso ou sermos bem sucedidos: mas o que significa isso para cada um de nós? A passagem do tempo dos 7 aos 40 desse menino me levou a reflexão da minha constituição enquanto pessoa, quais conteúdos da menina que fui ainda guardo sem conhecer? Este livro me trouxe de novo a sensação de impotência frente ao inevitável: a passagem do tempo e a vontade de poder manipulá-lo para frente e trás, para poder estar mais tempo com meu irmão que se foi tão jovem, para poder ficar mais tempo com meus pais que estão envelhecendo. Pude revisitar uma parte de mim, que às vezes acena do passado e me ajuda a construir o presente.

Fonte da Foto: (Fonte: Artborghi) 


Autoria: Glaucia Luiz Gotardo - psicóloga  e mestre em Letras
Revisão: Sônia Maria de Carvalho Pinto - artista plástica e doutora em Filosofia




Comentários

  1. Glau, parabéns pelo texto tão verdadeiro, que provocou em mim lembranças, uma emoção forte, vontade de ler esse livro e sentir o que, daquela criança, também permanece em mim hoje, aos 40. Belo texto, maravilhosas reflexões... Obrigada! (obs.: saudade do Emer)

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    Respostas
    1. Obrigada, Tati, por compartilhar suas emoções! Muita saudade do Emer também!

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