"Somos seres desejantes destinados à incompletude, e é isso
que nos faz caminhar"
Jacques
Lacan
Esse texto foi bem difícil de nascer, foram dias para que eu
encontrasse o tom adequado para essa conversa. E depois de uma semana mexendo,
tirando e pondo palavras aqui, hoje numa conversa com uma amiga querida,
percebi por que tanta resistência para enfrentar essa ilha desconhecida de José
Saramago. Porque o que ocorre neste conto acontece diariamente em sessões de
terapia ou mesmo numa conversa entre amigos: a busca por si mesmo. Afinal quem
sou eu? Buscar descobrir-se parece ser uma das questões fundamentais dos seres
humanos. A sensação de incompletude é o que nos move frente a essa angústia que
nos coloca a olhar para vida a perguntar: quem sou eu nessa vida que vivo?
Quantos de nós nos colocamos a pensar se a vida que estamos
vivendo foi de fato escolhida por nós ou corresponde a algo inicialmente
imaginado ou mesmo esperado por nós culturalmente. Quem somos nós frente às
escolhas que fazemos todos os dias: no trabalho, na família, com os filhos.
Como reconheço a minha personalidade frente a tantas demandas, afinal o que nos
move? Esse é um dos temas mais caros num processo terapêutico, pois, de alguma
forma, sentimos a necessidade de algo, que não está no nível consciente,
tentamos responder a isso de forma concreta com aquilo que vamos construindo em
nossa vida: a busca de um trabalho, de amigos, de amor, de dinheiro, dos
filhos, enfim, damos concretude a algo não nomeável ainda.
Em O Conto da Ilha Desconhecida*, do escritor português
José Saramago, temos um homem também nesta busca, ele vai à casa de um rei
pedir-lhe um barco. Ele junta-se a outras pessoas que batem à porta das
petições para fazerem seus pedidos, que só eram ouvidos quando o bater da porta
chamava a atenção da vizinhança. Porém a resposta seguia todas as vias
burocráticas, já que o rei chamava pelo 1º ministro, que passava ao 2º, até
chegar à mulher da limpeza que, pela sua função, não tinha ninguém abaixo dela,
por isso ficava encarregada de abrir a porta, ouvir o pedido e encaminhá-lo. E
o homem pediu para falar com o rei pessoalmente:
"Repartido pois entre a curiosidade que não pudera reprimir
e o desagrado de ver tanta gente junta, o rei, com o pior dos modos, perguntou
três perguntas seguidas, Que é que queres, Por que foi que não dissesse logo o
que querias, Pensarás tu que eu não tenho mais nada a fazer, mas o homem só
respondeu à primeira pergunta, Dá-me um barco, disse. [...]
E tu para queres um barco, pode-se saber, foi o que o rei de
facto perguntou quando finalmente se deu por instalado, com sofrível
comodidade, na cadeira da mulher da limpeza, Para ir à procura da ilha
desconhecida, respondeu o homem, Que ilha desconhecida, perguntou o rei
disfarçando o riso, como se tivesse na sua frente um louco varrido, dos que têm
mania das navegações, a quem não seria bom contrariar logo de entrada, A ilha
desconhecida, repetiu o homem, Disparate, já não há ilhas desconhecidas, Quem
foi que te disse, rei, que já não há ilhas desconhecidas, Estão todas nos
mapas, Nos mapas só estão as ilhas conhecidas [...]"
Esse homem tem uma demanda: encontrar a ilha desconhecida. É
visto como um louco que não pode ser contrariado, mas seu pedido desperta no
rei a curiosidade. Quem é este homem impertinente que ousa retirá-lo de suas
ocupações habituais? Alguém que pede algo concreto (um barco) para ir ao
encontro de algo aparentemente inexistente: uma ilha desconhecida, que não se
encontra nos mapas. Qual a proximidade do desejo deste homem com os nossos
desejos? Ao olharmos para esse diálogo entre o rei e o homem, vemos que a
possibilidade de traduzir uma demanda em palavras é algo que nos auxilia no
reconhecimento do que nos move, mesmo que em nossas palavras ainda não esteja
totalmente presente o que de fato buscamos, já que muito desse conteúdo pode
estar inconsciente. Traduzir o que sentimos e o que desejamos em linguagem é
uma das formas de adentrarmos nesse universo que somos nós. Em nossa próxima
conversa, acompanharemos esse homem nesta viagem para a ilha.
Até lá!
Glaucia Luiz Gotardo - psicóloga e mestre em Letras
Revisão: Sônia Maria de Carvalho Pinto - artista plástica e doutora em Filosofia
Glaucia Luiz Gotardo - psicóloga e mestre em Letras
Revisão: Sônia Maria de Carvalho Pinto - artista plástica e doutora em Filosofia
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