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Carrascoza: "Aos 7 e aos 40"





"A vida era o que era, e ele cada vez mais longe de sua fonte, mesmo se de volta a ela, como agora - tudo no caminho é para ficar lá atrás, pessoas carregam só aquilo que deixam de ser, o presente é feito de todas as ausêcias."
Carrascoza.

Recentemente uma de minhas poetas prediletas, Roseana Murray (logo conversaremos sobre ela aqui)  escreveu que, ao terminar de ler um livro, quando se apaixona por ele, tem vontade de beijá-lo, como se fosse de carne e osso. Assim me senti quando terminei de ler "aos 7 e aos 40",  do escritor João Anzanello Carrascoza, da editora Alfaguara. Queria abraçar aquele homem e dizer-lhe quantas vezes tinha me sentido assim, invadida por palavras que insistiam em não sair.
A narrativa poética de Carrascoza nos coloca junto dos silêncios que compõem a vida das personagens. Alternam-se cenas do menino e do homem. Num capítulo, acompanhamos o menino que cresce rodeado de cuidados da mãe e da companhia do irmão, numa infância permeada pela descoberta do outro, dos silêncios, da fragilidade:

"Eu ia correndo à vida. Aos setes anos, a gente é assim.
Pula de um doce pra um brinquedo. De um brin-
quedo pra uma tristeza. Tudo rápido, no demo-
rado da infância. O pai chegava, Olha o que eu
trouxe pra você!, e abria a mão: um punhado de
balas Chita![...]".  (CARRASCOZA, 2016, p. 8)

Em outro, a construção de um novo lar nos revelam o descobrir-se desse homem, que se constrói no dia a dia, em meio ao trabalho e à volta para casa. Todos os dias esse homem retorna para a esposa e o filho e lá encontra seu lugar, onde se refaz para continuar a lida do dia seguinte. Assim, o narrador nos traz  o cotidiano em seu andamento ordinário, ou seja, coloca o leitor diante de cenas tão comuns  e tão singulares.

"A sala, as cortinas abertas, lá fora o céu escurecendo
Devagar ⎻ como a vida deles, do menino, de todos ⎻,
a mesa posta e os móveis, em seus lugares,
diziam,
numa única voz,
Tudo está em ordem.
e, mesmo que fosse uma ordem interina, era uma
bênção:
nada de especial estava em curso, apenas o reencontro
de um homem e sua mulher, ao fim do dia,
e era aí,
na simples volta de um para o outro,
que se dava o milagre.
A mulher lhe acariciou os cabelos, como se a mecha
que caía sobre a testa a impedisse de ver se o rosto
flutuante em sua memória
coincidia com o de seu marido, atual,
diante dela.
ele se manteve quieto, entregue ao seu pejo, mas
seguro de que aquele afago buscava recongraçá-lo
para ela;
o mundo, durante o dia, desfigurava-o, e, à noite,
por meio daquelas mãos, ele se refazia.
 (CARRASCOZA, 2016, pp. 12-13)


A casa coloca esse homem em contato com a sua casa da infância. Aninha-lhe a memória de um tempo cuidado. Eram os cuidados da mãe e os ensinamentos do pai. Agora era a casa dele, sua esposa e seu filho que o esperavam. Ali o homem se preparava para enfrentar o mundo, buscando encontrar o significado de sua vida.
Assim, os capítulos alternam-se. Vemos o menino crescendo com a leitura de si e do mundo, com o auxílio do irmão e do pai, que compartilha com ele momentos de tristeza e incertezas, coloca o menino em contato com a fragilidade humana. Esse menino que se transforma em homem e agora é pai, reconhece ali também sua fragilidade e angústia frente à tarefa de ser marido e pai. Ele busca respostas para o vazio que sente. Procura preenchê-lo com o passado, coloca a vida presente como reflexo desse passado. Ele vai buscar suas raízes, mas não encontra mais o menino, nem as pessoas que participaram desse tempo da memória. Elas são outras, construíram nova vida, assim como nosso personagem, que busca encontrar um sentido para si, olhando apenas para o que ficou.
Freud nos diz que não é porque não conseguimos trazer à consciência nossas lembranças do passado que elas não afetam nossos sentimentos e comportamentos adultos.  Isso fica claro quando o homem tenta voltar à rua onde morou, visitar os amigos antigos. Existe aí uma tentativa de reencontrar algo que não sabe nomear, nem entender, mas que parece impedi-lo de seguir em frente.
O menino aprendeu a ler as pessoas e a escutar o silêncio. Silêncio esse que é compartilhado com o leitor, por meio de uma escrita poética e sensível, que nos emociona. Quantos de nós nos permitimos ler as pessoas? Conseguimos alcançar o silêncio necessário para escutar o outro, sem que ele nos diga? A velocidade da vida nos impede desse reconhecimento do outro, o silêncio incomoda, o vazio também:

"o homem,
com o radar ligado,
lia as pessoas ao redor,
tentando descobrir quem ali era doente,
quem acompanhante,
desviando-se de pensar naqueles que, em quartos de
UTI, nos andares de cima, estavam morrendo.
Então, guiado por uma força antiga,
mas há muito tempo em repouso,
ele se virou para a mulher,
a  mirá-la junto ao menino,
consolando-o com a sua palidez,
embora soubesse o que ela se lacerava para
manter aquela aparência despreocupada
- e, de súbito, sentiu o quão rápido o tempo se escoara
para eles, ainda ontem um casal jovem;
os dois envelheciam velozmente, mesmo se
imperceptível aos olhos diários,
e o que antes figurava normal,
o lento da vida,
ganhava agora uma estranha urgência,
ele, inesperadamente, estava impaciente,
não apenas para que atendessem o menino,
minoriando a sua aflição,
nem para que o jogo se resolvesse logo, mesmo com
a derrota de seu time,
ou para que retornassem à casa - e se atirassem
à inconsciência do sono,
não,
era mais que um sentimento de ação imediata,
o retorno a um estado de suspeição;
ele captara um alerta,
no suave mutismo da mulher,
a consolar o filho,
Calma, querido,
e, por um instante, sentiu que ele, pai, era apenas um
apêndice,
uma sobra naquela cena."
(CARRASCOZA, 2016, p. 31)


O distanciamento do amor, a dor da separação impõem a este homem um novo caminho. Ele tenta reencontrar o aconchego das cenas felizes. Olhar para o passado em busca de referências para o presente é uma forma de reconhecer-se como um indivíduo em construção. É entender que tudo o que deixamos para trás ajuda-nos a construir o presente. É revisitar a própria história para dar luz ao que ficou em nossa memória. É poder reconhecer parte do caminho percorrido por uma pessoa dos 7 aos 40.


Autoria: Glaucia Luiz Gotardo - psicóloga  e mestre em Letras
Revisão: Sônia Maria de Carvalho Pinto - artista plástica e doutora em Filosofia




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